“Déborah, preciso fazer uma sessão de devolutiva da Duda com você”.
O ano era 2017, a Duda estava com 6 anos e normalmente, nos finais de ciclos, a Psicóloga dela sempre faz uma devolutiva com os pais para falar das questões mais marcantes dos pacientes. Mas desta vez, ela não havia pedido “pais” e sim “você”.
Na sala de espera, já sentindo o coração na boca como se fosse tomar bronca da coordenadora da escola por ter feito algo errado, aguardava tirando o esmalte que acabara de colocar na unha.
Desde que me entendo por gente sempre foi assim: a insegurança expressa nas mãos, fosse suando, tirando o esmalte ou apertando as unhas contra a pele até ficar aquela marquinha que parece um sorrisinho meio maroto.
Com a biografia do Agassi nas mãos, tentava me distrair dos meus próprios pensamentos folheando o livro com a cabeça no mundo da lua.
“O que será que a Ana descobriu sobre mim que vai ‘borrar’ a minha imagem imaculada de mãe perfeita?”.
Hoje, tenho consciência de que era exatamente esse o pensamento que não me deixava prestar atenção a nenhuma página do livro.
E tenho consciência também dos gatilhos que disparavam em mim quando alguém “descobria” um erro ou uma imperfeição. Talvez por isso, eu me obrigue falar tanto sobre elas.
Brené Brown diz que para lidarmos com a vergonha precisamos expô-la, já que ela só se enfraquece quando é vista. Sim, eu tinha vergonha de ser imperfeita.
E quanta arrogância, não é mesmo? Quanta vontade de ser o “alecrim dourado” para ser aprovada e reconhecida.
Perdida em meus pensamentos, sinto uma mão em meu ombro: “Oi Déborah, vamos lá?”
Mãos frias, estrangulamento no estômago, olhar para baixo, coração acelerado. O “Déborah” sempre me traz a sensação de que alguém vai brigar comigo. Era assim em casa. “Tatá” era meu apelido, mas quando meu pai dizia “Déééborah!”, já sabia que vinha chumbo grosso.
“Oi, Ana, vamos sim!” - respondi com um sorriso sem graça.
Sentada de frente para ela, a sensação foi de estar completamente desnuda. O medo de olhar nos olhos dela e me sentir avaliada era realmente latente.
“Preciso falar com você sobre algo importante que a Duda trouxe na última sessão. Ela me disse numa brincadeira que estávamos fazendo que “só queria poder errar algumas vezes”.
Naquele momento, aquela frase entrou como uma faca no meu peito. “ELA SÓ QUER PODER ERRAR”.
Ana continuava falando, mas àquela altura do campeonato, era como se eu estivesse imersa naqueles desenhos animados em que uma pessoa fala e a outra, que deveria estar escutando, apenas ouve uma voz bem baixa, lá no fundo e enxerga tudo embaçado.
Minha cabeça parecia um turbilhão de pensamentos que iam desde “eu faço isso com ela porque sempre fui cobrada para ser perfeita”, passando por “agora a Ana descobriu que sou uma péssima mãe”, chegando a “não sei fazer diferente e vou acabar com a vida da Duda desse jeito”.
Minha mãe sempre disse: “Você é ótima em criar histórias mirabolantes na sua cabeça! “Você poderia ser a Glória Pérez porque faria muito sucesso!”
O que ela não sabia é que a Glória Perez “baixa” no meu cérebro muito mais do que eu gostaria.
É a incrível capacidade de criar uma história completa na mente, vivê-la e senti-la como se fosse a mais absoluta verdade.
“Volta, Déborah”.
“Na volta ao corpo”, Ana falava sobre um episódio que havia acontecido na volta da minha viagem para Nova York, em novembro.
Após a Maratona, de medalha no pescoço, fui até a loja de M&M para comprar as bolinhas coloridas mais gostosas do mundo. Na hora de pagar, a caixa, com um sorriso de orelha a orelha, me disse:
“Parabéns por ter corrido a Maratona! Queremos te dar um presente!” - e na sequência me entregou um avião que, quando a hélice era girada, expelia M&M a rodo.
“Nossa, a Duda vai amar isso!” - pensei já sacando o celular e mandando uma foto para ela, no celular do Fábio.
Quando cheguei ao Brasil, montamos o dito cujo e enchemos de M&M.
“Duda, não pode comer todo dia. Quando você quiser, peça para a mamãe, está bem?”
Numa determinada tarde, terminei de atender e quando abri a porta do escritório tive a sensação de que ela estava mexendo no avião.
“Você comeu M&M?” - perguntei.
“Não, mamãe.” - ela respondeu com a boca preta de chocolate.
“E o que é esse chocolate todo na sua boca?” - retruquei.
Ela, sem dizer nada, baixou a cabeça, cerrou as mãos e saiu andando. E-xa-ta-men-te como eu, quando alguém descobria algum erro meu.
Sermão. Sermão. Sermão.
Não foi para mim que ela disse que “só queria poder errar algumas vezes”. Mas como diria, não é mesmo? Não abri o espaço para a conversa. Fiz exatamente como meu pai fazia comigo.
Na sala da Ana, de frente para uma Psicóloga de crianças, a minha apareceu.
Chorando compulsivamente, coloquei tudo para fora. Anos tentando ser perfeita. Anos tentando esconder o pior de mim. Anos sacrificando relações que me faziam bem com as minhas cobranças para que a pessoa fosse “igual a mim: perfeita”. Anos.
Como poderia esperar que uma menina de SEIS anos tivesse um autocontrole altamente desenvolvido para resistir a um avião que soltava um jato de M&M’s a cada girada da hélice frontal? Era um teste do marshmallow diário com a minha própria filha.
“Como seria para você se ela pudesse errar algumas vezes e você fingisse não ver?” - amorosamente, como quem fala com uma criança, Ana me perguntou.
“Eu não sei. Pra mim é muito difícil lidar com erros… Mas acho que quando digo ‘para mim’ estou falando da Déborah pequena que era sempre cobrada para tirar dez em tudo e não podia errar nunca. A Déborah adulta, mãe da Duda, que quer ter uma boa relação com ela, talvez consiga”.
Foram seis anos entre essa conversa e esse texto. Anos de terapia. Saída da Terapia Comportamental para a Psicanálise. Formações. Alunas e clientes com questões muito similares que reverberaram em mim. Conversas e mais conversas em casa. Com o Fábio. Com a Duda. Catarses. Escrever e falar sobre as minhas imperfeições.
Mas o movimento mais importante talvez tenha sido o de mostrar minhas imperfeições para a Duda. Errar e pedir desculpas. Cobrar e quando sentia que era demais, explicar o porquê daquilo. Dizer para ela como me sinto e ajudá-la a colocar os sentimentos dela para fora também.
Hoje ela me diz quando estou ultrapassando o limite do razoável. Eu avalio e conversamos. Às vezes preciso de um tempo para digerir, embora esses “gaps” tenham se tornado cada vez menores.
Tive dois exemplos muito distintos na minha casa: minha mãe, que educava na conversa, e meu pai, que achava que a conversa tirava a hierarquia dele, o poder de pai. E eu o entendo (hoje) porque foi assim que ele foi criado e no fim das contas, o mais confortável é dar apenas o que recebemos.
Fazer diferente dá muito trabalho. Cansa. E dá vontade de desistir também.
Apesar de ser contraintuitivo o que vou dizer, é muito mais leve ser IMperfeita. Sabe por quê? Porque quando você é IMperfeita, é REAL, é você, é autêntica. E não existe nenhuma sensação de liberdade maior - nem a de pular de paraquedas - do que a de sermos nós mesmas.
Para ser IMperfeita e REAL é preciso coragem. É preciso dizer sim para muitas sombras com as quais não sabemos lidar e que fazemos de absolutamente tudo para que o mundo não veja. Você não precisa mostrá-las para todo mundo, mas apenas para quem adquiriu o direito de conhecê-las. Essas pessoas são aquelas que fazem parte da sua vida e que sim, merecem saber quem você é do avesso.
E se você pudesse dizer SIM para tudo isso num movimento de aceitação e não de concordância? Quem concorda baixa a cabeça e fica no mesmo lugar. Quem aceita toma consciência e tem a prerrogativa da mudança.
Eu não sei de que lado você está hoje, mas embora seja extenuante esse vigiai e orai eterno, eu prefiro estar no time das IMperfeitas.
Caramba, desvendou os mistérios de casa e a autoconfiança da minha filha! Obrigada por compartilhar!🧡
Quanta coragem para escrever esse texto lindo. Emocionada. 🥹